Enquanto houver estrada para andar
Nem Deus pode mudar a verdade, diz uma personagem qualquer do Tennessee Williams, já não me lembro em que peça. É uma daquelas frases que me acompanha há décadas. Sempre que me vejo perante uma realidade que não consigo alterar, vem-me à cabeça o aforismo. E a verdade agora é esta: estamos confinados ao autoisolamento como medida para achatar a curva, usando uma expressão cada dia mais em voga nos blocos noticiosos e nos jornais de referência. De repente, descer a rua para dar dois dedos de conversa no café da esquina e comprar um croissant com chocolate transformou-se numa odisseia. Lubas e máscaras, cada passo é medido e cada gesto é pensado para corrermos o menor risco possível. O vírus é matreiro, tanto quase não se manifesta como mata. E agora? Agora é preciso ter calma e praticar a paciência combinada com o verbo aceitar.
Para quem trabalha em casa há 20 anos como eu, a mudança não é nem drástica nem violenta. Cumpro as minhas rotinas e respeito os meus horários. Mantenho o telefone me silêncio enquanto estou a escrever. De meia em meia hora descanso os olhos no horizonte longínquo, recomedaçãos do oftalmologista para que a dioptrias galopem mais devagar a cada ano que passa. Jean Paul Sartre dizia que o infernos são os outros, eu acho que o inferno somos nós. O caminho para a paz só se constrói com paz, embora, paradoxalmente, sejam necessários alguns atos de guerra para ganhar batalhas.
As grandes desilusões da vida encerram pelo menos o mérito de nos esclarecer para a evidência de que são poucas as pessoas que valem mesmo a pena. As que valem o nosso tempo, o nosso amor, a nossa dedicação e carinho contam-se pelos dedos de uma mão, ou, com muita sorte, das duas, e são sempre os amigos e a família. Sempre. A família aprende a aturar-nos mesmo quando não nos compreende e os amigos percebem tudo. A amizade deve ser o sentimento com o nível de empatia mais elevado. O amor é total, egoísta, tantas vezes egocêntrico e mimado. A amizade é sobretudo feita de paciência, de entendimento, de solidariedade e de empatia. Os teus melhores amigos são as pessoas que melhor te percebem e que sofrem com as tuas dores. Os mais ingénuos tentam resolvê-la, os mais experientes dão-te pistas para que consigas continuar, sem parar, enquanto houver estrada pra andar, como canta o Jorge Palma.
Neste tempo de recolhimento obrigatório em nome de um bem maior, vale a pena, mais do que nunca, cultivar as relações familiares, os amigos de sempre, os vizinhos prestáveis e simpáticos, todas as pessoas que valem a pena. Os dias em casa podem parecer longos e bizarros, mas podemos aprender a reverter isso, com listas de tarefas distribuídas por horas e dias, como aqueles horários que colávamos a fita cola no verso da capa do dossier do liceu. E nessa distribuição do tempo, reservemos algum para telefonar a quem mais amamos, de preferência por Facetime, para nos sentirmos visíveis enquanto vemos os outros. Isto vai passar, enquanto houver estrada pra andar, a gente vai continuar, mesmo que agora o sonho se faça quieto em casa .
by Margarida Rebelo Pinto
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