Sem desejo não somos nada, vivemos com as emoções adiadas ou guardadas numa gaveta e essa compressão involuntária acabará por nos envenenar. Mas sem razão não somos ninguém, porque perdemos a capacidade de entender o nosso eu e o mundo que nos rodeia

A razão ajuda-nos a ver com clareza o que os desejos do coração turvam

Crescemos habituados a separar a razão do coração como se de dois inimigos se tratassem

Crescemos habituados a separar a razão do coração como se de dois inimigos se tratassem. Por um lado, sentimos todos os dias na pele e no corpo o peso do que sentimos, do desejo que nutrimos pelos outros, das paixões e dos enlevos que a vida nos vai oferecendo.
Por outro, sentimos a obrigação de ouvir a voz da razão e de a seguir, mesmo quando ela fala contra as nossas emoções – sobretudo neste caso. Mas é aqui que reside o erro, porque se de facto sentimos essa obrigação, então é um sentimento que comanda a vontade no que toca à inclinação para a razão, logo, essa opção de ser racional provém muitas vezes de um instinto de sobrevivência que está mais próximo de um sentimento do que de uma ideia.

E se a razão não for antagónica do coração, mas sua orientadora e aliada? A racionalidade pode ser a mãe de todas as emoções, dando-lhes entendimento, contexto e a medida certa. É através da racionalidade que nos entendemos melhor e que, entendendo melhor os outros, a nossa capacidade para os aceitar também aumenta. Talvez por isso diga há tantos anos que não tenho outra ambição que a do entendimento: quando percebo as pessoas, o que as faz dizer certas coisas ou seguir por determinados caminhos, tudo fica mais leve, mais fácil de aceitar, porque já foi processado e entendido.

A razão ajuda-nos a ver com clareza o que os desejos do coração turvam. Yourcenar escreveu que a realidade única é exacta, pois sobre ela sempre paira o véu do desejo. Sem desejo não somos nada, vivemos com as emoções adiadas ou guardadas numa gaveta e essa compressão involuntária acabará por nos envenenar. Mas sem razão não somos ninguém, porque perdemos a capacidade de entender o nosso eu e o mundo que nos rodeia. Então por que não pôr a razão ao serviço das emoções em vez de imaginar que cada face da nossa natureza tem de viver de costas voltadas em trincheiras sem ver o outro lado?

Quando amamos alguém, gostamos de pensar que amamos para lá de todas as qualidades e apesar dos defeitos. Mas, na verdade, se não tivermos razões para amar, esse amor acabará por morrer. Eu gosto do lado alquímico de uma paixão porque implica um mistério que não consigo desvendar, e esse mistério é uma forma de poder que prevalece sobre os outros. Mas se chegar à conclusão de que, por várias razões, esse amor não vale a pena ser vivido, sei que com o tempo tal pensamento se vai transformar em sentimento, e que o outro, que amei, deixará de ser o meu objeto amoroso. É verdade que as mulheres demoram mais tempo a transformar em pensamento um sentimento do que os homens, mas também chegam lá.

Basta ter autoestima – seja homem ou mulher – para rejeitar uma relação incompleta, negligente ou egoísta. É quando a razão fala mais alto do que o coração – por uma questão de saúde emocional e em prol do bom funcionamento da máquina cardíaca – que este entende o que é melhor para ele. A razão torna-se assim a melhor aliada do coração, porque o protege e o faz ver o desejo, a paixão, o amor, o ciúme e o sentimento de perda, em perspectiva. É o entendimento que nos salva, mesmo quando o coração está partido. Sobretudo neste caso.



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